‘Houve um despertar cultural da mulher chilena’, diz neta de Allende
MujeresEla leva a política no sangue e hoje é uma das mulheres fortes e visíveis da oposição ao governo do presidente Sebastián Piñera. Aos 47 anos, a deputada socialista Maya Fernández Allende, neta do ex-presidente Salvador Allende (1970-1973), acaba de deixar a presidência da Câmara, cargo que exerceu durante um ano. Agora, concentrará esforços para impulsionar a bancada feminista num Parlamento controlado pela centro-esquerda e num país que nos últimos anos foi cenário de marchas históricas e protestos cada vez mais intensos para instalar uma agenda de demandas das mulheres.
Em entrevista ao GLOBO, Maya assegurou que seu avô “estaria orgulhoso e marchando junto a nós: “Ele era um defensor dos direitos das mulheres”. Após o golpe de 11 de setembro de 73, Maya e sua família se exilaram em Cuba, onde sua mãe, Beatriz Allende, suicidou-se em 1977. A deputada retornou ao Chile com a redemocratização, em 1990, e apesar de ter estudado biologia e veterinária terminou mergulhando na política, uma paixão familiar. “O Chile está vivendo uma grande mudança cultural, mas ainda temos muitas lutas pela frente”, afirmou Maya, que, perguntada sobre a situação da região e especialmente a crise venezuelana, considerou “incorreto” comparar Allende com Hugo Chávez ou Nicolás Maduro já que “cada um deve construir sua própria história”.
O movimento feminista chileno tem crescido muito e conseguiu instalar uma agenda de demandas inédita para o Chile. Como a senhora avalia este momento?
O ano passado foi muito importante para o movimento feminista chileno, houve um despertar cultural. As estudantes chegaram a paralisar as universidades para combater o assédio, exigir medidas de combate a essas condutas machistas. Existe um reconhecimento dos direitos femininos como nunca antes. É importante dizer que isso não aconteceu da noite para o dia, muitas mulheres estão lutando há muito tempo, inclusive durante a ditadura (1973-1990).
Houve um renascimento do movimento feminista chileno?
Sim, porque estavam dadas as condições para esse renascimento. Tivemos grandes mulheres, grandes batalhadoras que ajudaram. O feminismo sempre esteve presente no Chile através de mulheres públicas e outras anônimas. No começo, as deputadas que defendiam os direitos femininos eram tratadas como loucas. Isso mudou radicalmente.
A senhora foi até semana passada presidente da Câmara. Que vitórias foram conquistadas no Parlamento?
A principal delas foi que conseguimos criar uma Comissão Permanente de Mulheres e Igualdade de Gênero. Nossos projetos nunca eram prioridade porque não tínhamos uma comissão que os tratasse como tal. Nessa comissão discutimos iniciativas, conversamos com mulheres, falamos sobre a violência contra as mulheres. Estamos muito dedicadas a todas as questões que envolvem mulheres e temas de gênero. Houve uma mudança cultural no Congresso também, porque muitos homens apoiaram a criação dessa comissão. Também aprovamos um protocolo de assédio no Parlamento já que o anterior só incluía funcionários administrativos. Conseguimos ter um Congresso livre de assédio, o que funciona como um exemplo para ministérios, universidades, etc…
Quais são hoje as principais demandas das mulheres chilenas?
A questão da violência contra a mulher é algo gravíssimo. No ano passado tivemos 42 feminicídios e somente este ano já foram 11. A marcha de 8 de março passado, Dia Internacional da Mulher, foi a maior que já tivemos no Chile desde o retorno da democracia e foi convocada pelas mulheres. Também demandamos mais espaço no poder, na política e nas empresas. Igualdade de salários é importante. Temos um projeto apresentado pela ex-presidente Michelle Bachelet (2006-2010 e 2014-2018) sobre o direito da mulher a ter uma vida livre de violência. É uma iniciativa que visibiliza todo tipo de violência, em todos os aspectos da vida. Também temos um projeto para combater o assédio nas ruas.
O Chile permite o aborto em três casos específicos. Existe a possibilidade de discutir uma lei sobre legalização geral do aborto?
Eu defendo essa possibilidade, acho que o Congresso chileno deve debater tudo. Não podemos ter temas tabu. Acho que o país está preparado e essa é uma demanda de muitas de mulheres.
É um peso ser neta de Allende?
Não, é um orgulho. Allende foi um homem que sempre teve princípios, um homem leal a suas convicções e a seu povo.
O que ele acharia desse empoderamento da mulher chilena?
Tenho uma foto linda dele marchando ao lado de várias mulheres. Já naquela época ele nos apoiava. Hoje estaria ao nosso lado, marchando por nossos direitos.
Na Venezuela, país que vive uma delicadíssima crise política, alguns chavistas costumam comparar Hugo Chávez e até mesmo Nicolás Maduro com Allende…
São figuras diferentes e não podem ser comparadas. Acho que isso não corresponde. Cada um deve construir sua liderança, seu caminho.
Qual é sua opinião sobre a Venezuela e as opções para superar a crise?
Vivemos um momento complexo na região, talvez um dos mais complexos. Acho que política se resolve com política. Aqui deve haver uma saída política, uma eleição, não uma intervenção militar. Na América Latina as democracias devem ser fortalecidas e os problemas políticos resolvidos com mais política. As intervenções nunca terminaram bem no continente. O que precisamos é de mais democracia.
O Globo