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Há 43 anos, Vladimir Herzog era «suicidado» pela ditadura militar no Brasil

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Foto: Wikimedia Commons

Vladimir acordou mais cedo que de costume no sábado, 25 de outubro de 1975. Fez a barba, tomou banho e se despediu da mulher Clarice, ainda na cama, com um beijo. Ela quis se levantar e preparar o café, ele disse para não se preocupar, que no caminho pararia em um bar e tomaria café com leite. Vlado chegou ao número 1 030 da rua Tomás Carvalhal, no bairro do Paraíso, em São Paulo, perto das 9h. No prédio de muros altos guardados por sentinelas armados, onde funcionava o Destacamento de Operações Internas – Comando Operacional de Informações do 2º Exército, o DOI-CODI, Vlado entrou pela porta da frente. Disse ao atendente seu nome completo, sua profissão e o número de seu RG. Informou que na noite anterior, por volta das 21h30, dois homens que se identificaram como agentes de segurança do Exército o tinham procurado na TV Cultura, onde trabalhava, e que, para não ser detido, se comprometera a se apresentar ali no dia seguinte. E assim o fizera. Depois disso se pôs a esperar, sentado em um dos bancos de madeira que margeavam o largo corredor que levava a uma porta fechada de aço e vidro. Minutos depois, quando foi levado para interrogatório, ele permanecia tranquilo.

O Brasil de 1975 não parecia ser um lugar em que um jornalista com emprego fixo e endereço conhecido, casado e pai de dois filhos, devesse se preocupar com a própria segurança. Mas era. Em março de 1974, o general Ernesto Geisel assumira a presidência com a promessa de promover a abertura do regime ditatorial. A palavra usada na época era “distensão” e significava aliviar a censura, investigar denúncias de tortura e aumentar a participação da sociedade civil na política. A ditadura light de Geisel, porém, encontrou duas contrariedades. Primeiro a derrota do partido do governo, a Arena, nas eleições para a Câmara e o Senado. Em novembro, o oposicionista MDB fizera 16 dos 22 senadores e 160 das 364 cadeiras da Câmara. Depois, o impacto da crise do petróleo, que colocava fim aos anos do milagre, quando a economia brasileira cresceu mais de 5% ao ano.

Nos bastidores da política dominada pelos quartéis, esse cenário despertou o medo da chamada linha dura do regime. Gente que via qualquer oposição como subversão e que combatia qualquer subversão com violência, tortura e assassinato. Gente que se apoiava no CIE – Centro de Inteligência do Exército – e encontrava nos DOIs espalhados pelo país guarida para atividades ilegais e violentas. Gente que preferia o inferno à “distensão” e ao que ela representava. Em menor ou maior grau, essa gente viveu nos porões da ditadura e, dependendo da ocasião e do apoio oportunista de políticos e militares às suas práticas, teve menor ou maior influência sobre o governo. Foi maior entre 1969 e 1973, depois da publicação do AI-5, quando o combate ao terrorismo e focos de guerrilha os alçaram à linha de frente do regime. Foi menor em 1974, quando Geisel assumiu. Entre outubro de 1969 e dezembro de 1973, 2 mil pessoas passaram pelo DOI-CODI em São Paulo: 502 reclamaram de tortura e pelo menos 40 foram assassinadas. Em 1974, apenas uma foi presa.

Em 1975, porém, a repressão estava de volta. “Sem terroristas para caçar e com o guerrilha do Araguaia devolvida ao silêncio da floresta, o Centro de Informações do Exército avançou contra o Partido Comunista”, diz o jornalista Elio Gaspari, autor de A Ditadura Encurralada. Em 13 de janeiro o CIE invadiu a gráfica da Voz Operária, o jornal do partido, que operava na clandestinidade, num sítio no Rio de Janeiro. No dia seguinte, Elson Costa, um dos responsáveis pela gráfica e dirigente do PCB, desapareceu. Foi morto numa casa mantida pelo CIE na periferia de São Paulo, segundo testemunho do sargento Marival Chaves Dias do Canto à revista Veja, em 1992. Entre janeiro e julho, pelo menos 500 membros do partido foram identificados, 200 foram presos e pelo menos 14 morreram. Em outubro, nova onda de prisões: 61 pessoas foram detidas. A intenção era demonstrar a tese do CIE de que o PCB havia se infiltrado no MDB, na imprensa e até no governo. Essa última acusação era, inclusive, foco das desavenças entre o comandante do 2º Exército, o general Ednardo D’Avila Mello, e o governador do Estado, Paulo Egydio Martins.

Aos 38 anos, Herzog assumira, em setembro, a diretoria de jornalismo da Cultura, emissora do governo. Era militante comunista, mas não desenvolvia atividade clandestina e sua participação se limitava a ir a reuniões. Em sua direção, porém, confluíam três crises, todas regadas de ódio. “Uma era o choque da linha dura com Geisel. Outra, a caçada ao PCB. A terceira era o conflito entre o general Ednardo e o governador Paulo Egydio. A prisão de Vlado servia a todas”, diz Gaspari.

Tortura e morte herzog-1112306

Antes de ser preso, em 17 de outubro, Paulo Markun, também jornalista da Cultura, conseguiu mandar um recado aos colegas, indicando quem seriam os próximos. Anthony de Cristo, George Duque Estrada e Rodolfo Konder foram presos antes de serem alertados. Fernando Morais conseguiu escapar. Vladimir foi avisado, mas não quis fugir.

Depois que entrou no DOI, Vlado trocou de roupa e vestiu o macacão dos presos. Ainda pela manhã, foi acareado com dois presos. Com as cabeças cobertas por capuzes de feltro preto, eles não podiam se ver. Mas um deles, Konder, reconheceu o amigo: “Empurrei a borda do pano e vi o preso que chegava. Eu o reconheci pelos sapatos: eram os mocassins pretos que Vlado usava.” Nessa hora, Vlado negou que pertencesse ao PCB e Konder e o outro preso foram retirados para um corredor, de onde ouviram os gritos de Vlado e a ordem para que fosse trazida a máquina de choques elétricos. “Os gritos duraram até o fim da manhã. Os choques eram tão violentos que faziam Vlado urrar de dor”, diz Konder. Um rádio foi ligado em alto volume para abafar os sons. Meia hora depois, por volta das 11h, Vlado foi para a sala de interrogatórios.

“Mais ou menos uma hora depois, me levaram a outra sala onde pude retirar o capuz e ver o Vlado. O interrogador, um homem de uns 35 anos, magro, musculoso, com uma tatuagem de âncora no braço, mandou que eu dissesse a ele que não adiantava resistir”, lembra Konder. Vlado estava com o capuz enfiado na cabeça, trêmulo, abatido, nervoso. Sua voz estava por um fio. “Fui obrigado a ajudá-lo a redigir uma confissão que dizia que ele tinha sido aliciado por mim para entrar no PCB e listava outras pessoas que integrariam o partido.” Konder foi levado e os gritos recomeçaram. Essa foi a última vez que Vlado foi visto e ouvido. “No meio da tarde, fez-se silêncio na carceragem”, diz George Duque Estrada que também estava preso no DOI, em relato no livro Dossiê Herzog – Prisão, Tortura e Morte, de Fernando Pacheco Jordão.

Às 22h08 a Agência Central do SNI, em Brasília, recebeu uma mensagem: “Info que hoje, dia 25 out, cerca de 15 hs, o jornalista Vladimir Herzog suicidou-se no DOI/CODI/II Exército”. Seria o 38º suicida, o 18º a se enforcar e, de acordo com o Laudo de Encontro de Cadáver, emitido pela Polícia Técnica de São Paulo, teria feito isso com uma tira de pano. Herzog teria se amarrado pelo pescoço numa grade a 1,63 metro do chão. Sem espaço para que seu corpo pendesse, teria ficado com os pés no chão e as pernas curvadas, como mostrava a foto anexada ao laudo. Segundo comunicado do comandante do DOI, a tira de pano era a “cinta do macacão que o preso usava”. Os macacões do DOI não tinham cinto. “Suicídios desse tipo são possíveis, porém raros. No porão da ditadura, tornaram-se comuns, maioria até. O último, em São Paulo, acontecera cerca de um mês antes, na mesma cela. Dos 17 casos anteriores de suicídio por enforcamento, oito não tiveram vão livre. Em dois, os presos teriam morrido sentados”, diz Gaspari.

O morto fala

Sem notícias do marido desde a manhã, Clarice estava preocupada. Por volta das 23h bateu à sua porta um grupo de diretores e funcionários da Cultura. Entraram calados, sentaram-se na sala e disseram-lhe que as coisas se complicaram. “Mataram o Vlado!”, ela teria dito, segundo seu relato no livro Vlado, de Paulo Markun. “Eles me falaram que Vlado estava morto e que fora suicídio. Senti ódio. E uma grande impotência.”

“Eles mataram o Vlado”, disse o amigo e jornalista Fernando Pacheco Jordão, autor de Dossiê Herzog, em telefonema para Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas. Era quase 1 da manhã e Jordão ainda daria muitos telefonemas na madrugada. “Mataram o Vlado”, repetiu a dom Paulo Evaristo Arns. “Não sei se já não é hora de um protesto mais forte. Quem sabe sair pelas ruas”, respondeu o cardeal.

O jornalista Mino Carta, na época diretor da revista Veja, foi um dos primeiros a chegar à casa dos Herzog. Ele vinha de Santos, onde estivera justamente para pedir a ajuda do secretário de Segurança do Estado, Erasmo Dias, no caso das prisões dos colegas. Segundo depoimento a Paulo Markun, no livro Vlado, Mino ligou para o coronel Golbery do Couto e Silva, ministro da Casa Civil. “Vá ao Paulo Egydio”, teria dito o “feiticeiro”, como era conhecido por sua intimidade quase mágica com o poder. Golbery lhe disse, ainda, que aquilo, a morte de Vlado, era uma tentativa de golpe contra Geisel. Mino seguiu o conselho e procurou o governador Paulo Egydio, no Palácio dos Bandeirantes. Quando saiu, o governador chorava.

Desde a morte do ex-deputado Rubens Paiva, num quartel da Polícia do Exército no Rio, em 1971, era a primeira vez que morria no porão da ditadura alguém da elite, com vida profissional legal e atividade política praticamente nula. “Horas depois da morte de Herzog começou um daqueles processos em que reações individuais e desarticuladas desembocam em comportamentos que, sem coordenação ou planejamento, constroem os fatos históricos”, diz Gaspari.

Mas o DOI tinha sua própria estratégia para lidar com o assunto. O corpo de Herzog foi entregue à Polícia Técnica e levado ao Instituto Médico Legal, onde chegou sem a roupa com que fora fotografado, mas com os próprios trajes. O laudo do exame de corpo de delito, assinado pelos médicos Harry Shibata e Arildo de Toledo Viana, do IML, concluiu: “quadro médico legal clássico de asfixia mecânica por enforcamento”. Ainda na noite de sábado, o corpo foi enviado ao Hospital Albert Einstein. Estava tudo pronto para mais um sepultamento típico de mortes ocorridas nas dependências das Forças Armadas, durante a ditadura: rápidos e discretos.

Clarice não quis assim. Para que houvesse velório, ela marcou o enterro para a segunda. No domingo, cerca de 600 pessoas foram à cerimônia, entre eles o cardeal Arns e o senador Franco Montoro. “Era a primeira vez que um arcebispo e um senador da República velavam um morto do regime”, diz Gaspari. “Formou-se uma grande frente e, na segunda, todos estavam mobilizados pela morte de Herzog.”

No cemitério israelita do Butantã, os responsáveis pelo funeral apressaram tanto a cerimônia que dona Zora, mãe de Vlado, não chegou a tempo de se despedir do filho, viu apenas quando jogavam terra por cima do caixão. Quatro jornalistas que estavam presos no DOI-CODI foram levados até o local. Konder foi um deles: “Não deixaram a gente se trocar, me levaram com roupas sujas de urina, sangue e fezes. Foi assim que assisti ao enterro de meu amigo.”

“Senhor Deus dos Desgraçados, / Dizei-me Vós, Senhor Deus / Se é mentira, se é verdade, / Tanto horror perante os céus.” Depois de ler o trecho de Navio Negreiro, de Castro Alves, Audálio Dantas fez correr entre os presentes outro verso: “Reunião no sindicato”.

Ação e reação

“Se a tigrada quisera desmantelar o PCB, já o conseguira. Se queria outra coisa, era outra coisa que queria”, afirma Elio Gaspari. Pelo menos uma pessoa achou, assim que Vlado morreu, que era “outra coisa”: o presidente Geisel.

Ele só soube da morte de Herzog no domingo. Na segunda, em visita ao Rio, não tratou do assunto e parecia ter assimilado o golpe. Mas a linha dura queria mais. Na manhã de quarta, dia 29, o general Sylvio Frota, ministro do Exército, ligou para o ministro da Justiça, Armando Falcão. Falcão relata o telefonema em seu livro Tudo a Declarar. “O senador do Paraná, Leite Chaves, disse no Congresso que o suicídio do jornalista Vladimir Herzog não passa de ‘um crime ignominioso’. Estou reunido com o Alto-Comando e ninguém aceita o insulto. Queremos uma reparação imediata.” Era a “outra coisa que queriam”. Queriam atacar o Congresso, provocar cassações e, por tabela, jogar areia no projeto de distensão de Geisel.
Nas ruas de São Paulo, o clima era outro. Ainda na segunda-feira, cerca de 30 mil estudantes da USP, PUC e Fundação Getúlio Vargas entraram em greve. A garotada queria marchar pela cidade, mas aguardava a reunião com os jornalistas. Juntos, aprovaram a realização de um ato religioso pela memória de Vlado na sexta, dia 31. O cardeal Arns tomou a iniciativa: ofereceu a catedral da Sé e disse que estaria lá.

Na quarta-feira, Geisel mandou chamar Frota. Há duas versões parecidas para a conversa dos dois generais. Uma narrada pelo presidente ao seu secretário Heitor Ferreira e relatada por Gaspari em A Ditadura Encurralada.“Vocês escolham lá um presidente e venham me substituir”, teria dito. A outra foi narrada por Frota a Falcão e reproduzida em Tudo a Declarar: “O presidente me disse que se quisessem insistir no caso tratassem de ir arranjando outro para colocar em seu lugar”. A ameaça encostou Frota na parede. O ministro recuou.

Até o fim da semana, os dois lados temeram que o outro reagisse e fosse para a rua. Em Brasília temia-se que os universitários promovessem passeatas. Em São Paulo, o medo era de que o regime proibisse a manifestação. Geisel foi a São Paulo na quinta e se hospedou no Palácio dos Bandeirantes, onde se reuniu com os chefes militares do Estado. Para começo de conversa, perguntou ao general Ednardo sobre o Inquérito Policial Militar a respeito da morte de Herzog. Não fora instalado, porque o ministro Frota determinara que não fosse. Pois seria. Embora não se destinasse a apurar as causas da morte de Vlado, mas “as circunstâncias em que ocorreu o suicídio do jornalista”, a instauração do IPM já era uma derrota para Ednardo, Frota e a turma do porão.

“À noite, o governador promoveu uma festa em homenagem a Geisel. Entre os 1500 convidados estava a bancada oposicionista, até o deputado Alberto Goldman, líder do partido na Assembléia e militante do PCB”, diz Gaspari. Goldman relata a rápida conversa que teve com o presidente em seu livro Caminhos de Luta. “Presidente, o MDB está apreensivo com o que vem acontecendo em São Paulo, quanto ao respeito dos direitos humanos”, disse o deputado. “Não pensem que eu não entendo o significado de suas presenças aqui, neste momento”, respondeu o general.

No dia seguinte, o povo estava na rua e fazia a primeira manifestação contra a ditadura após o AI-5. Um pouco antes da hora do culto, dois secretários do governador ainda procuraram o arcebispo de São Paulo e lhe pediram para cancelar o evento. “Fui informado que existiriam mais de 500 policiais na praça com ordem de atirar ao primeiro grito. Se houvesse protestos, eles metralhariam a população”, lembra dom Paulo. A estratégia dos manifestantes era chegar à praça em pequenos grupos, evitando aglomerações. Cerca de 8 mil pessoas se espalharam pelas escadarias da Sé. As que conseguiram entrar viram o cardeal, o rabino Henry Sobel e mais 20 sacerdotes, entre eles dom Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife. “Ninguém toca impunemente no homem, que nasceu do coração de Deus para ser fonte de amor”, disse dom Paulo. “Nas minhas dores, ó Senhor, fica ao meu lado”, respondeu a audiência.

Para Elio Gaspari, naquela tarde de 31 de outubro de 1975, a oposição brasileira passou a encarnar a ordem e a decência. “A ditadura, com sua ‘tigrada’ e seu aparato policial, revelara-se um anacronismo que procurava na anarquia um pretexto para a própria reafirmação.”

Fonte: Aventuras na História

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