«O Brasil é o país mais desigual, ou um dos mais desiguais», diz economista Piketty em entrevista
Noticias* Entrevista originalmente publicada no jornal Zero Hora, no dia 29 de setembro de 2017
Entre o lançamento do best-seller «O Capital no Século XXI», de Thomas Piketty, e a primeira visita do economista francês a Porto Alegre, uma lacuna foi preenchida e uma nova polêmica surgiu no início deste mês. O Brasil, que havia ficado fora do livro, virou objeto de estudo de um dos colaboradores de Piketty, Marc Morgan.
As conclusões causaram furor: de 2001 a 2015, a desigualdade no Brasil pouco se alterou, ao contrário do que sugeriam políticas de distribuição de renda acentuadas nos governos Lula. Consciente da controvérsia, mas sem saber detalhes, o francês avalia que o Brasil adotou boas políticas, mas não suficientes.
Lembrando que níveis extremos de desigualdade levaram a “eventos dramáticos” no início do século passado – a revolução bolchevique, a I e a II Guerras Mundiais –, adverte que é preciso aprender com esses erros para corrigir a tempo os efeitos da globalização sobre a desigualdade.
Qual é seu papel no estudo de Marc Morgan sobre desigualdade no Brasil? É parte de seu projeto para países emergentes?
Sim, é definitivamente parte de nosso programa de pesquisa. Para resumir, temos essa base de dados, WWID, e confiamos no esforço de uma centena de pesquisadores agora para mais de 20 países.
Marc Morgan é o pesquisador encarregado do Brasil. Ele está concluindo seu doutorado na Paris School of Economics e sou seu supervisor de pesquisa, acompanhando de perto seu trabalho no Brasil.
Ele está tentando aplicar no Brasil a mesma metodologia dos demais países. Seu trabalho sobre o Brasil é muito interessante, com os melhores dados e análise que temos para acompanhar a evolução da desigualdade e compará-la com outros países.
O Brasil é o país mais desigual, só comparável ao Oriente Médio e à África do Sul?
Sim, com os dados que temos hoje, podemos dizer que o Brasil é o país mais desigual, ou talvez um dos mais desiguais do mundo. As únicas exceções na nossa base de dados que são comparáveis ao Brasil ou talvez um pouco piores são Oriente Médio e África do Sul.
Isso não é de forma nenhuma reconfortante para o Brasil, porque a África do Sul é um país que enfrentou o apartheid até 1994 e o Oriente Médio tem uma forma muito diferente de desigualdade, existe uma grande quantidade de reservas de petróleo em áreas muito pequenas, com populações pequenas.
É uma forma extrema de desigualdade. Então, sim, na nossa base de dados o Brasil está nessa categoria.
Por que o diagnóstico é de que a melhora na desigualdade foi obtida à custa da classe média, não dos mais ricos?
O estudo de Morgan tenta combinar, pela primeira vez, três tipos de dados. Um deles é a forma mais comum para analisar desigualdade – interessante, mas não suficiente –, que é a concentração na camada de renda superior.
Usa também dados do Imposto de Renda, que não são perfeitos, provavelmente subestimam as faixas superiores, mas mais confiáveis. E usa ainda dados macroeconômicos sobre PIB e renda per capita. Concluiu que a desigualdade é muito alta. E isso não mudou nos últimos 15, 20 anos. Nenhum governo, de esquerda ou de direita, mudou de fato esse estado de coisas.
A segunda conclusão é de que, mesmo que a magnitude não tenha mudado, há pequena melhora na renda de 50% da população. A fatia do PIB, que estava abaixo de 11% em 2001, foi para 12%. Não é uma enorme mudança, mas ao menos a metade de baixo foi beneficiada pelo crescimento um pouco acima da média. Nesse período, a metade de renda mais baixa nos Estados Unidos teve grande declínio na participação no PIB, houve um colapso.
Nos EUA, em 1990 a parcela da renda dos 50% mais pobres era de 20%, atualmente está ao redor de 10%, mesmo nível ou até mais baixa do que no Brasil. E essa pequena melhora, no Brasil, foi de fato à custa da classe média, que definimos como os 40% situados entre os 50% da base e os 10% do topo. A parcela dos 10% do topo, nesse período, subiu de 54% para 55% do PIB. Então, é uma conclusão mista, difícil.
Houve pequena melhora na desigualdade entre a base e a classe média, mas piora entre a média e o topo. Coisas foram feitas no Brasil, algumas boas, outras não tão boas quanto poderiam ser.
Soube que isso causou inversão de opiniões sobre seu trabalho? Fale mais sobre isso, porque não acompanho esse debate.
Houve críticas por contrariar a noção de que a desigualdade havia diminuído nos anos recentes. Alguns viram como ataque a Lula? Deixe-me esclarecer. Nossas descobertas não são ataque nem elogio a Lula. Não é problema nosso. O que fazemos é tentar produzir conhecimento novo.
Se alguém quiser extrair conclusões políticas, algumas medidas adotadas nos governos Lula foram boas, porque melhoraram a posição relativa da base, como aumento do salário mínimo e do Bolsa-Família.
A limitação decorre do que não foi feito, como a reforma tributária, com estrutura mais progressiva de cobrança de impostos para o topo. Talvez por isso a melhora na desigualdade tenha sido paga pela classe média. O topo não paga impostos altos no Brasil devido a variadas isenções a dividendos, falta de tributação sobre fortunas e, em particular, sobre heranças.
A taxação para transmissão de riqueza de pais para filhos varia entre Estados, mas a média do Brasil fica entre 3% e 4%. No Japão é de 55%, nos EUA, 35%, no Reino Unido e na Alemanha, 40%. Não estou dizendo que o número mágico está entre 30% e 50%, mas 3% a 4% é pouco, especialmente em um país com altos impostos sobre pobres e classe média. Ainda há impostos indiretos elevados, como os 20% a 30% sobre a conta de luz.
Então, a conclusão política é de que a esquerda deveria ter feito mais, e pode fazer mais no futuro, assim como a direita. Na história da desigualdade, há melhoras como legado tanto da esquerda quanto da direita. Os governos de Alemanha, Reino Unido e Japão, que estão longe da esquerda, não querem reduzir a taxação de herança ao nível brasileiro, de 3% a 4%. (Risos.)
A direita ou a centro-direita aceita a ideia de que os ricos precisam contribuir com sua parte em tributação progressiva. É algo que as elites política, econômica e financeira no Brasil têm de aceitar.
Um livro muito interessante, chamado «Tributação e desigualdade», vai sair no Brasil em outubro, com um capítulo de Marc Morgan. E outros economistas brasileiros reforçam a conclusão de que o Brasil precisa de um sistema tributário mais progressivo. Espero que isso contribua com o debate político para a eleição presidencial no país, que deveria incluir esse tema.
É fato que o Brasil ficou fora de «O Capital no Século XXI» por falta de acesso a dados?
Sim, peço desculpas por isso, não foi minha culpa. Um dos impactos positivos do sucesso do livro foi nos ajudar a criar pressão para obter acesso. Ainda não temos tanto quanto gostaríamos. O estudo de Morgan traz os resultados do que obtivemos até agora, mas gostaríamos, no futuro, de ter mais detalhes, com dados mais precisos.
O que há de novo sobre a base de dados de desigualdade é que colocamos tudo na mesa. Todos podem ver o que temos e como trabalhamos. Mostramos também o código do programa, é uma Wikipedia da desigualdade. Todos podem usar, melhorar. Não fingimos que temos dados perfeitos. Foi o melhor que pudemos fazer com o acesso que tivemos. Esperamos ter mais no futuro e vamos revisar as séries quando tivermos mais acesso.
É eficaz debater reforma tributária em períodos como este, de grande desconfiança sobre o uso de dinheiro público em razão da corrupção no Brasil?
É preciso ter mais transparência. Não só sobre o sistema tributário, quem paga o quê, mas sobre quem tem acesso a serviços públicos, como educação.
A resposta à falta de confiança nos partidos e nos governos que vemos hoje no Brasil não é menos governo e menos distribuição de renda. É mais transparência sobre quem paga, quanto paga, sobre as fortunas não só dos políticos, mas dos proprietários da mídia, das grandes companhias, como se acumulam fortunas, como se transfere às próximas gerações.
Isso é necessário para construir mais confiança na sociedade. É a forma como vemos nosso trabalho: tentar reconciliar os cidadãos com a economia.
A falta de confiança que se vê no Brasil nestes dias é um pouco extrema, mas se vê, de forma menos acentuada, também em outros países. Cidadãos sentem que a globalização não está funcionando para eles. Está servindo a pequenos grupos, grandes corporações, privilegiados, mas não para pessoas comuns.
Há falta de confiança nas estatísticas econômicas porque as pessoas ouvem falar do crescimento do PIB, mas não veem o resultado na sua conta do banco, na sua renda. Parte do que tentamos fazer é uma ponte no espaço da falta de confiança em estatísticas.
Por isso, precisamos de mais dados sobre renda distribuída, não apenas crescimento econômico para restaurar confiança e consistência. O mesmo ocorre com impostos e orçamentos.
As pessoas precisam ver onde está seu dinheiro e o que é feito com seu dinheiro. À medida que consigam identificar, conseguem aceitar um sistema mais progressivo de impostos.
Brexit e eleição de Trump são resultados da insatisfação com os ganhos desiguais da globalização?
Sim, é o lado sombrio da desigualdade. Vejo o Brexit e a eleição de Trump acontecendo nos dois países do Ocidente nos quais a desigualdade é mais evidente, e penso que não é coincidência. A razão pela qual isso aconteceu é que, se não se aborda a desigualdade a tempo, e se não se encontra um modo democrático e pacífico de reduzi-la, sempre haverá políticos que tentarão explorar a frustração e o ódio que originam e culpar outros.
Então, pode-se culpar trabalhadores estrangeiros, muçulmanos, trabalhadores latinos nos EUA, poloneses no Reino Unido. É sempre possível culpar alguém, e se vê isso em meu país, onde a extrema-direita vem fazendo esse jogo há tempo. É consequência de termos um sistema de globalização injusto e não desenvolvermos modos democráticos de reduzir a desigualdade.
Não podemos ter tratados apenas para liberalizar comércio e moeda. Acredito no livre comércio, mas deveria se aliar a políticas públicas robustas para trazer mais justiça fiscal, social e ambiental. De vez em quando, há grandes reuniões de cúpula em Paris ou outros lugares, onde se fala sobre clima, equidade e equilíbrio tributário.
No dia seguinte, surge um acordo comercial e isso é esquecido. Em tratados de integração, deve haver medidas flexíveis sobre justiça fiscal, pagamento de multinacionais sobre emissões de carbono. Não deveria ser assunto de notas de rodapé, deveria estar no primeiro ou no segundo capítulo.
Se não mudarmos a forma desses acordos, haverá tendência de decisões unilaterais, protecionistas e nacionalistas. Trump, atualmente, é o pior exemplo do que pode ocorrer se não alterarmos o rumo da globalização.
Enquanto escrevia, anteviu eventos como Brexit e eleição de Trump? Foi um profeta acidental ou bem-informado?
O que identifiquei, historicamente, é que grandes desigualdades tendem a alimentar tensões sociais e nacionalistas. É uma lição da história que devemos conhecer.
No início do século 20, havia níveis extremos de desigualdade, e uma das conclusões de meu livro é que isso contribuiu para grandes tensões sociais e nacionalistas e, por fim, para a ascensão do nacionalismo, a I Guerra Mundial, a Revolução Bolchevique e a grande sequência de eventos dramáticos entre 1914 e 1945, que mudaram o mundo.
Uma das lições é que a desigualdade extrema pode levar à tensão nacionalista e também à resposta política. Após essa grande sequência de choques entre 1914 e 1945, um novo sistema político foi instaurado, vieram previdência social, Estado de bem-estar social, educação pública, tributação progressiva.
Surgiram boas medidas a partir disso, mas apenas após um longo período de caos e violência. Precisamos ser cuidadosos para fazer melhor desta vez, aprender com esses erros. As elites europeias são conservadoras e não aceitam reformas até que não haja outra opção.
Você vê ironia no fato de ter publicado um livro de crônicas chamado «Às Urnas, Cidadãos», e os cidadãos que foram às urnas mostrarem certa inclinação pela extrema-direita?
Esse livro reúne crônicas curtas que publico em jornais. É um exercício útil porque força um acadêmico a escrever textos curtos. Acadêmicos às vezes ficam muito fechados, é bom ser confrontado nesse debate público.
Coletei eventos dramáticos de 2016, em particular o Brexit. A eleição na França teve resultados diferentes das recentes na Alemanha, que de certo modo assustam mais em relação ao futuro. O principal objetivo é dizer que acredito na democracia. As pessoas devem ser cidadãos mais ativos, não deixar que outros decidam por nós.
Minha interpretação do sucesso de «O Capital» no Século XXI é que muitas pessoas, em todo o mundo, estão cansadas. Acham tudo complicado, ouvem que temas econômicos são técnicos e deveriam ser deixados para um pequeno grupo de especialistas.
As pessoas estão cansadas disso, querem ter controle sobre suas vidas e seu destino político. As coisas nem sempre vão nessa direção, mas acredito que a democracia, que força o cidadão a ser ativo, vai prevalecer. Talvez seja uma visão bastante otimista da democracia.
Mais do que economista famoso, você se tornou celebridade. Como lida com isso?
Você está exagerando. Minha vida não chegou a mudar muito. Passo a maior parte do tempo no meu escritório, ensinando meus alunos, e passo bastante tempo com minhas três filhas. Tenho uma vida bem normal em Paris.
Sua palestra ocorreu em auditório geralmente reservado para shows em Porto Alegre.
(Risos) Isso mostra uma grande demanda quanto à democratização do conhecimento, inclusive econômico, e da pesquisa histórica. Não podia imaginar que o livro seria tão bem-sucedido, mas me esforcei para permitir que fosse acessível.
Vou continuar trabalhando nisso. Vou escrever um grande livro baseado em pesquisa histórica. Mas ainda passo a maior parte do meu tempo sozinho em meu escritório ou com pares ou alunos.