Entrevista com Maria da Penha, vítima de violência doméstica que inspirou a criação de lei para proteção das mulheres brasileiras
MujeresEm 1983, a farmacêutica bioquímica Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima do marido, com um tiro nas costas enquanto dormia. O disparo deixou-a paraplégica. Julgado e condenado por duas vezes, ele obteve liberdade devido a recursos impetrados pelos advogados. Ela não esmoreceu.
Onze anos depois, publicou o livro Sobrevivi… Posso contar, que serviu para denunciar o Brasil na Organização dos Estados Americanos. A denúncia resultou na condenação internacional do Brasil por tolerância e omissão estatal.
Com a repreensão, o país foi obrigado a cumprir recomendações como mudar a lei para prevenir e proteger a mulher em situação de violência doméstica e punir o agressor. Nascia a lei federal 11.340, mais conhecida pelo nome da vítima cearense. Confira a entrevista:
Que balanço pode ser feito nesses últimos 10 anos em relação à lei? Como é possível avançar?
Eu tenho dois aspectos, um positivo e um negativo. O positivo é que 98% da população brasileira tem conhecimento que existe uma lei para cuidar das mulheres e proteger da violência doméstica. Que essas políticas públicas que atendem ao funcionamento da lei foram criadas nas grandes cidades, geralmente nas capitais. E o negativo é que infelizmente são poucos os pequenos e médios municípios que têm criado a estrutura para fazer a lei funcionar. Os gestores públicos dos pequenos e médios não estão investindo na condição para que a lei realmente tenha de atender as mulheres. Agora, tem-se que cobrar dos gestores públicos a obrigação que eles têm de atender as mulheres de seus municípios, criando os equipamentos que fazem com que a lei saia do papel.
A senhora enxerga uma mudança no comportamento das mulheres? Elas estão mais encorajadas a denunciar?
Sim, exatamente onde as políticas públicas foram criadas, existe a divulgação sobre a lei. Existe a procura das mulheres para esses equipamentos. Por exemplo, o centro de referência da mulher é um espaço onde ela não precisa denunciar, tem atendimento psicossocial e jurídico, e que ela vai entender e vai escolher ou vai se situar numa situação em que quando ela decidir denunciar ela vai estar segura e não vai voltar atrás. Os outros equipamentos também são muito importantes. A importância também de todos os outros equipamentos: a casa abrigo, para o caso de essa mulher não poder retornar para casa, porque sofre perigo de ser assassinada. O juizado e a delegacia da mulher.
Com base na sua própria experiência de vida, por que é tão difícil romper o ciclo da violência?
Primeiro por medo, né? Com certeza esse homem tem poder sobre essa mulher, psicológico e de força. E segundo porque ela acredita que o agressor vai mudar, porque ele promete isso a ela depois de uma agressão. Ele se faz de arrependido, mas em outra ocasião ele faz a mesma coisa ou até pior. E às vezes ela também se sente incapaz de cuidar dos seus filhos, de se sustentar sozinha, porque ela não tem nenhuma renda. Tudo isso pesa para ela decidir sair daquela situação. O centro de referência é exatamente o local onde ela pode ter respostas para as suas angústias.
E qual é a impressão que se tem hoje sobre os homens? Eles pensam duas vezes antes de agredir uma mulher já que existem lei e equipamentos de proteção?
Olha, no momento em que o Estado dá o seu exemplo de compromisso com a lei, os homens repensam suas condutas. Eu tenho histórias de mulheres que dizem que no dia que o seu vizinho foi preso em flagrante por bater na mulher os outros nunca mais levantaram a mão para elas. Assim eles sentem que a lei veio para cuidar dessa mulher que é vítima de violência doméstica. Mas se o inverso acontecer, se o policial não foi capacitado, chega na comunidade atendendo a um chamado, não assume o seu papel de prender o agressor, então ninguém mais acredita que a lei vai ter efetividade.
Olhar para o agressor é uma forma de prevenir a violência contra a mulher?
Com certeza. Porque esses agressores foram educados por agressores. Eles cresceram vendo os pais batendo nas mães. Vendo o seu avó batendo na sua avó. E isso ser considerado normal. Ou vendo a mãe achar que aquilo era normal, porque deixou de fazer algo para o pai. Então, foi educado dessa maneira. E nessa educação é que a gente precisa investir. O poder público precisa investir na Educação para mostrar aos homens e mulheres que nós temos os mesmos deveres e os mesmos direitos. Nós temos o dever, sim, de tratar nosso companheiro, nossa companheira, com dignidade. O homem tem que respeitar a sua mulher como pessoa humana.
Como isso deve ser feito? Grupos de homens devem ser aplicados em mais lugares?
Sim, com certeza. A gente tem grupo de homens que trabalham no enfrentamento da violência contra a mulher exatamente para esclarecer aos agressores a maneira como eles tratam mulheres. E que ao não tratar de uma maneira equilibrada, de respeito, eles podem ser presos. E aqueles que estão presos, estão revendo suas condutas. Pode até ser que eles não retomem o relacionamento que resultou na prisão, mas em um outro relacionamento ele já vai repensar sua conduta. Caso ele cometa o mesmo crime de bater na sua mulher, ele vai ser preso novamente.
Algumas pessoas relutam nesse atendimento e dizem que a prioridade deve ser a mulher. Qual é a sua opinião sobre isso?
Eu entendo que a prioridade do gestor público é fazer com que a lei Maria da Penha saia do papel e funcione realmente. No momento em que a lei sai do papel, também tem que se pensar no homem agressor. O atendimento ao homem agressor vai se fazer de uma maneira mais lenta, porque realmente a mulher é prioridade. A mulher é a maior vítima desse tipo de relacionamento.
Esse pode ser o caminho para evitar reincidência? Há melhor estratégia?
No fato já consumado, o agressor vai ter que repensar suas condutas. Antes, a educação precisa estar desde o ensino básico até o universitário. As crianças devem sensibilizar desde cedo, para quando forem jovens já terem entendimento de que é errado. E esses alunos vão ser os futuros operadores da lei. Quer na área jurídica, social, de saúde… Eles vão estar sensibilizados e saber abordar uma mulher que chega no hospital com lesão provavelmente provocada pelo marido. Entender que aquela violência não é o que ela está dizendo: que foi um escorrego, um atropelo, mas que é uma violência originária de um relacionamento, da violência doméstica.
Homens também se dizem vítimas em alguns relacionamentos. O que a senhora pensa sobre isso?
Essa agressão que os homens dizem que sofreram é uma auto-defesa. Porque a mulher não tem condição de enfrentar a força física do homem. Essas respostas que aparecem e que são colocadas na maioria das vezes são defesas delas. Estatísticas mostram que apenas 2% de homens que chegam a sofrer algum tipo de violência doméstica. O restante é a mulheres que sofreram.
A edição da lei do feminicídio é avanço?
Foi muito pertinente a criação do feminicídio. Para caracterizar cada vez mais o quanto as mulheres são vítimas da violência chegando a ser assassinadas.
E as medidas protetivas emitidas pelos delegados, que vêm sendo discutidas. Acha certo?
Olha, é necessário, antes de qualquer mudança, fazer com que a lei funcione. Porque se a lei funcionar, não vai precisar de mudanças. Se a lei funcionar de verdade, se os equipamentos forem criados, se as delegacias da mulher funcionarem 24 horas por dia como a lei manda, não há necessidade de a medida protetiva ser dada pela delegacia. Eu não sou da área jurídica, mas eu percebi que realmente a lei precisa funcionar para a finalidade que ela foi criada e respeitando cada instituição. A delegacia tem papel específico, o Ministério Público tem, o juizado tem. Então esses poderes precisam se harmonizar e não procurarem ver falhas na atitude do outro e tentar assumir aquela atitude. A lei foi criada com apoio de juristas internacionais com experiências de outras leis de violência contra a mulher. Então foram mais de quatro anos para que essa lei fosse editada de acordo com os tratados que o Brasil assinou e ratificou.
É possível acabar com a violência contra a mulher?
Diminuir e muito é possível. Acabar a gente tem esperança, mas tem `n¿ fatores que ainda vão ser trabalhados para que esse acabar aconteça. Tenho esperança de que a cada ano, havendo responsabilidade do gestor público em relação a essa lei, a violência vai sim ser expressamente diminuída.
Gabriele Duarte para o Diário Catarinense