Ministério Público denuncia membros da ditadura pela morte de militante político no Brasil
NoticiasO Ministério Público Federal de São Paulo denunciou um ex-delegado, um ex-procurador e um ex-juiz aposentado por colaboração com a ditadura militar no Brasil. Essa é a primeira denúncia contra membros da Justiça e do Ministério Público Militar por crimes praticados durante os anos do regime. O crime investigado é a morte do militante político Olavo Hanssen , em maio de 1970.
Segundo a denúncia, o procurador da Justiça Militar Durval Araújo e o juiz da Auditoria Militar Nelson Guimarães prevaricaram ao se omitir e legitimar a tortura sofrida por Hanssen nas dependências do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, no centro de São Paulo.
O militante foi preso em 1 de maio de 1970 enquanto entregava panfletos em comemoração ao Dia do Trabalhador, na zona leste da capital. Ele já havia sido detido outras quatro vezes durante a ditadura por entregar materiais gráficos considerados «subversivos».
Entre 2 e 8 de maio daquele ano, Olavo Hanssen foi torturado sob o comando do delegado Josecir Cuoco, também denunciado pelo MPF. Outros dois agentes da ditadura, Ernesto Milton Dias e Sálvio Fernandes do Monte, investigadores do Dops, também participaram da tortura — ambos já faleceram.
Os procuradores torturaram Hanssen em busca de informações sobre a organização que o militante participava, ligada ao movimento operário trotskista, além da localização da gráfica onde os panfletos e jornais «subversivos» eram impressos.
No dia 5 de maio, Hanssen foi torturado por seis horas. O militante foi obrigado a ficar nu e foi submetido a afogamentos, espancamentos no «pau de arara» e na «cadeira do dragão» (um assento de metal no qual os presos eram eletrocutados, usualmente molhados com sal na boca para aumentar os efeitos da corrente elétrica).
A denúncia aponta que, de acordo com testemunhas, Hanssen voltou à cela atordoado e com ferimentos em todo o corpo. Urinando sangue, um médico foi chamado pelos outros presos. No entanto, adotou apenas medidas paliativas.
Segundo o MPF, apesar da piora no seu quadro, Hanssen voltou a ser torturado. Encaminhado ao Hospital do Exército da 2ª Região Miilitar, morreu no dia 9 de maio.
Diferentes versões foram apresentadas pelas órgãos da ditadura para explicar a morte de Hanssen. Inicialmente, os agentes afirmaram que o militante morrera por causas naturais e que seu corpo fora encontrado em um terreno.
Pressionados por deputados, outra versão foi apresentada e que indicava que Hanssen havia se suicidado e falecido no hospital do Exército.
O procurador Durval de Araújo e o juiz Nelson Guimarães foram acusados, então, de terem acobertado o crime. O representante do Ministério Público Militar endossou o relatório policial sem realizar mais diligências, concordando com a versão de que o militante se suicidou com um pesticida agrícola, apesar de sinais de tortura constarem da necrópsia de Hanssen. As informações não constaram na manifestação de Durval de Araújo.
O juiz Nelson Guimarães, por sua vez, arquivou o inquérito mesmo recusando a versão do suicídio.
«Olavo Hanssen, se estava distribuindo aludidos panfletos numa concentração pacífica de trabalhadores, era, ao mesmo tempo, mais um agente e vítima do sistema de ideias mais abominável e desumano que a mente humana até hoje elaborou”, escreveu em sua decisão.
Segundo os procuradores, Durval e Nelson buscaram legitimar a morte de Olavo e se omitiram em cumprir seu dever de investigar as causas da morte. Em 2014, à Comissão da Verdade, o juiz Nelson Guimarães admitiu que Hanssen foi assassinado nas dependências do Dops em razão das torturas. Indagado sobre se tinha conhecimento das agressões no Dops, o juiz aposentado respondeu que sabia de episódios não apenas lá como em outros órgãos policiais.
O procurador Andrey Borges de Mendonça pediu, além da condenação, que a Justiça Federal determine a cassação das aposentadorias de Durval e Nelson, além da perda das condecorações que receberam – ambos receberam a Medalha do Pacificador.
Durval de Araújo foi continuamente promovido no Ministério Público Militar. Em 1975, foi indicado para atuar no caso Vladimir Herzog, onde teria atuado para comprovar a versão de que o jornalista havia se suicidado apesar das evidências que demonstravam que Herzog fora torturado e morto por agentes da ditadura.
Imprescritíveis
A denúncia do Ministério Público Federal se junta a outras 37 já apresentadas na Justiça Federal. Em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) manteve a vigência da Lei da Anistia. Os procuradores, no entanto, apresentam uma tese divergente e afirmam que os crimes cometidos pela ditadura se caracterizam como crimes contra a humanidade e, portanto, não estão passíveis de anistia e não prescrevem mesmo com a passagem do tempo.
De acordo com o MPF, crimes contra a humanidade se caracterizam em um contexto de ataque sistemático e generalizado do Estado brasileiro contra a população civil.
O Brasil já foi condenado duas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não investigar e responsabilizar agentes envolvidos em crimes na ditadura.
O Globo